Por Arthur Goes
A declaração de lei marcial na Coreia do Sul, anunciada pelo presidente Yoon Suk Yeol em 3 de dezembro de 2024, trouxe o dispositivo jurídico-militar para o centro do debate internacional. A medida, usada como resposta a uma suposta infiltração de espiões pró-Coreia do Norte, gerou controvérsias dentro e fora do país. Para entender as implicações dessa decisão, é necessário explorar o que é a lei marcial, suas consequências e como ela já foi utilizada ao longo da história.
O que é a lei marcial?
A lei marcial é um instrumento jurídico que transfere poderes civis para as forças militares em situações de grave ameaça à ordem pública, conflitos armados ou crises institucionais. Ela geralmente suspende direitos e liberdades civis, substitui o sistema judiciário convencional por tribunais militares e permite uma atuação ampliada das forças armadas para “manter a segurança”.
No caso da Coreia do Sul, a Constituição do país, em seu Artigo 77, define que a lei marcial pode ser declarada pelo presidente em situações de emergência nacional. A medida pode ser de dois tipos:
- Preventiva: Restringe atividades políticas e liberdades básicas.
- Extraordinária: Permite medidas mais severas, como controle da imprensa, proibição de greves e ações militares contra civis considerados subversivos.
Impactos e consequências da aplicação da lei marcial
A imposição da lei marcial geralmente causa:
- Restrição de direitos: Proibição de manifestações, greves, e liberdade de imprensa.
- Polarização política: Aumento das tensões entre governo e oposição, como visto na Coreia do Sul, onde o Parlamento inicialmente foi bloqueado por forças militares.
- Reações internacionais: Condenação por parte de organizações de direitos humanos e outros países, preocupados com abusos de poder.
- Danos econômicos: Instabilidade política pode afastar investidores, prejudicar exportações e desestabilizar a moeda local.
Na Coreia do Sul, a decisão gerou protestos imediatos, inclusive dentro do governo. A oposição classificou a medida como “um golpe contra a democracia”, enquanto líderes globais expressaram preocupação sobre a erosão dos direitos humanos na região.
Resgate histórico: a lei marcial no mundo
O uso da lei marcial não é exclusividade da Coreia do Sul. Ao longo da história, muitos países recorreram a esse dispositivo em momentos de crise:
- Filipinas (1972-1981): O presidente Ferdinand Marcos usou a lei marcial para consolidar seu poder, dissolver a oposição e governar como ditador.
- Tailândia (2014): O Exército declarou lei marcial antes de assumir o controle do governo, resultando em um golpe militar.
- Brasil (1968): O AI-5, durante o regime militar, teve características de lei marcial ao restringir direitos civis e concentrar poderes no Executivo.
Esses exemplos mostram que, em muitos casos, a lei marcial é utilizada como ferramenta para aumentar o controle governamental, frequentemente às custas da democracia e dos direitos humanos.
A crise na Coreia do Sul e o impacto global
A justificativa de Yoon Suk Yeol para a declaração de lei marcial incluiu a ameaça de espiões pró-Coreia do Norte e ações da oposição, como a rejeição ao orçamento do governo. A medida foi rapidamente derrubada pelo Parlamento sul-coreano, mas a situação destacou a fragilidade política do país.
Internacionalmente, a crise reacende preocupações sobre a estabilidade na Península Coreana, já marcada pelas tensões constantes com a Coreia do Norte. Uma Coreia do Sul instável pode:
- Enfraquecer alianças globais: Especialmente com os Estados Unidos, que dependem do país como um baluarte contra o avanço da China e da Coreia do Norte.
- Prejudicar mercados internacionais: A Coreia do Sul é um centro de inovação tecnológica e produção industrial, com marcas como Samsung, Hyundai e LG desempenhando papéis cruciais na economia global.
- Impactar a segurança regional: Dando margem para ações mais agressivas da Coreia do Norte ou desestabilizando a Ásia Oriental como um todo.
O conteúdo do decreto
Entre as principais disposições, destacam-se:
- Suspensão de atividades políticas: Assembleias, conselhos locais, partidos políticos e manifestações estão proibidos.
- Censura total: Mídias e publicações estão sob controle militar, com forte repressão a notícias falsas ou manipulação da opinião pública.
- Proibição de greves e paralisações: Trabalhadores, especialmente da área médica, estão obrigados a retornar às suas funções sob pena de punição.
- Poder militar ampliado: Autoridades podem prender, deter e revistar cidadãos sem mandados.
A justificativa oficial é a proteção do regime democrático contra ameaças internas e externas, particularmente de forças consideradas pró-Coreia do Norte.
O futuro da democracia sul-coreana
O uso da lei marcial na Coreia do Sul é um lembrete das tensões que ainda marcam a região, mesmo décadas após o fim da Guerra da Coreia. Embora a medida tenha sido revogada rapidamente, ela expõe divisões internas que podem fragilizar uma das democracias mais robustas da Ásia.
Em um mundo interconectado, as consequências de crises políticas vão muito além das fronteiras nacionais. Para a Coreia do Sul, preservar a estabilidade é essencial não apenas para o bem-estar de sua população, mas para manter sua posição como um dos principais atores econômicos e democráticos do mundo.
Abaixo está uma tradução da agência de notícias Reuters do decreto militar:
“Para proteger a democracia liberal da ameaça de derrubar o regime da República da Coreia por forças antiestatais ativas na República da Coreia e para proteger a segurança do povo, o seguinte é declarado em toda a República da Coreia a partir das 23:00 em 3 de dezembro de 2024:
1. Todas as atividades políticas, incluindo as atividades da Assembleia Nacional, conselhos locais e partidos políticos, associações políticas, comícios e manifestações, são proibidas.
2. Todos os atos que negam ou tentam derrubar o sistema democrático liberal são proibidos, e notícias falsas, manipulação da opinião pública e propaganda falsa são proibidas.
3. Todas as mídias e publicações estão sujeitas ao controle do Comando da Lei Marcial.
4. Greves, paralisações de trabalho e comícios que incitem o caos social são proibidos.
5. Todo o pessoal médico, incluindo médicos estagiários, que estejam em greve ou tenham deixado a área médica devem retornar aos seus empregos dentro de 48 horas e trabalhar fielmente. Aqueles que violarem serão punidos de acordo com a Lei Marcial.
6. Cidadãos comuns inocentes, excluindo forças antiestatais e outras forças subversivas, estarão sujeitos a medidas para minimizar inconveniências em suas vidas diárias.
Os infratores da proclamação acima podem ser presos, detidos e revistados sem mandado de acordo com o Artigo 9 da Lei Marcial da República da Coreia (Autoridade de Medidas Especiais do Comandante da Lei Marcial) e serão punidos de acordo com o Artigo 14 da Lei Marcial (Penalidades).
Comandante da Lei Marcial, General do Exército Park An-su, terça-feira, 3 de dezembro de 2024.”